Novos sabores, a mesma experiência

Por meio da inteligência artificial e do machine learning, a foodtech chilena NotCo desenvolve produtos como hamburguer, leite, maionese e sorvete combinando diversos vegetais, diz Luiz Augusto Silva, que assumiu a presidência da empresa no Brasil em 2019

Fernando Murad

Das cerca de 35 mil plantas comestíveis para os seres humanos, apenas 12 representam a maior parte da produção global. Por meio da inteligência artificial e do machine learning, a foodtech chilena NotCo desenvolve produtos como hamburguer, leite, maionese e sorvete combinando diversos vegetais. Seu Not Milk, por exemplo, é fruto da mistura de abacaxi, chicória e repolho. “A alimentação tem relação com o cérebro mais primitivo, é quase dependência. Embora entendam, as pessoas não querem trocar o que comem. Precisamos de dois pontos: produtos saborosos e gostosos, que satisfaçam a memória afetiva, e preço”, ressalta Luiz Augusto Silva, que assumiu a presidência da NotCo no Brasil em 2019, após quase 20 anos de atuação em multinacionais como Danone e Unilever.

Meio & Mensagem — Os impactos da pandemia, de alguma forma, provocaram mudanças no processo de transformação digital da NotCo?
Luiz Augusto Silva — Já somos uma companhia de tecnologia aplicando inteligência artificial para formular produtos para os consumidores. Acreditamos que o sistema alimentar está quebrado, precisa ser trocado. Temos memória afetiva, não queremos mudar o que comemos. Quando pensamos em base vegetal, temos uma imagem de salada de alface, cenoura, palmito, que é light, saudável, mas frio, sem gosto, que não entrega a experiencia daquilo que mais gostamos de comer. Usamos a inteligência artificial para aumentar a base de plantas usadas para produzir. Temos mais de 400 mil plantas, 35 mil comestíveis para os humanos e cerca de 12 representam a maior parte da produção. Temos um universo de plantas não explorado. Quando começamos a ver a combinação desse universo inexplorado, achamos que encontraríamos as mesmas sensações, sabor, cor, textura, aroma e tabela nutricional de carne só usando plantas. Já aplicamos muito de tecnologia para chegar nas misturas improváveis. O Not Milk, por exemplo, tem abacaxi, chicória e repolho. Tecnologia está no cerne da companhia, foi a forma como desenvolveu os negócios. Com a pandemia, só aceleramos esse processo. As pessoas vão identificando que a pandemia tem relação com os hábitos alimentares da população. Há uma conexão óbvia e direta. Antes, já olhávamos para o sistema alimentar e usávamos a tecnologia para acelerar essa transformação. Se entregarmos a mesma sensação daquilo que substituiremos, não tem por que não substituir. Tem tudo menos vaca.

M&M — Quais projetos da companhia foram acelerados?
Luiz — Nosso primeiro mês de faturamento no Brasil foi em janeiro deste ano. Tivemos que replanejar. Umas das mudanças óbvias foi a presença do e-commerce nos nossos negócios. No começo do ano, imaginávamos um plano de negócios em varejo e food service. Produzimos muitos alimentos que podem ser consumidos direto ou transformados. A parte de food service desapareceu. O índice de restaurante fechado é brutal. Replanejamos dois caminhos: e-commerce próprio, que lançamos em julho, e marketplace. Uma observação interessante é que as linhas de separação entre os negócios ficaram mais borradas. O Magalu, de linha branca e eletro, agora tem mercado. O GPA, através do James (Delivery) imagina vender comida pronta na casa das pessoas. As linhas de limites dos negócios ficaram mais elásticas. Abrimos o Why Not, restaurante no iFood. Tínhamos planos de fazer demonstração em lojas. Como podemos fazer com que as pessoas tenham espaço de experimentação para ver o quão gostoso nosso produto é em comparação com o que querem substituir? Fizemos um restaurante proprietário. Se fosse anos 1990, não seria possível. A cozinha compartilhada facilita o treinamento. A economia do compartilhamento, como coconstruir, é o modelo chave. Aproveitamos da tecnologia que existe de captação de pedidos, de entrega e de cozinha compartilhada e operamos o restaurante.

“Temos um universo de plantas não explorado. Quando começamos a ver a combinação desse universo inexplorado, achamos que encontraríamos as mesmas sensações, sabor, cor, textura, aroma e tabela nutricional de carne só usando planta. Com a pandemia, só aceleramos esse processo”

M&M — Como funciona o processo de desenvolvimento de produtos da companhia?
Luiz — A tecnologia proprietária criada a partir do entendimento do desenvolvimento de produto alimentício estava muito arcaico. Há anos as empresas estão fazendo melhoras incrementais no produto existente. O processo de desenvolvimento estava ilógico e os fundadores viram que cabia uma disrupção. A quantidade de plantas e dados para processar… Usamos algoritmos para predizer o que acontecerá com o produto dessas misturas. Trabalhamos em campos moleculares e celulares. A tecnologia permite processar isso. Organizamos bancos de dados. Houve proximidade de academias de renome desde o início, principalmente os fundadores. Temos laboratórios de machine learning no Chile e nos Estados Unidos.

M&M — Como é o processo de produção da companhia? Já tem fabricação no Brasil?
Luiz — Começamos antes de janeiro deste ano com a importação de Not Mayo (maionese) do Chile, mas não era bom do ponto de vista tributário. Cada categoria é feita em diferentes fábricas. Temos terceiros que trabalham com maionese, leite, sorvete (Not IceCream) e hamburger (Not Burger). Uso a metáfora do modelo Coca-Cola: preparamos nossos xaropes — que são líquidos, pós e óleos — e mandamos para a comanufatura. Há muito comunalidade na linha de produção de leite longa viva e do leite vegetal, é 90% igual. A partir da mistura feita, é tudo igual. Uma fábrica que opera produto de origem animal, pode operar vegetal, 95% do processo é igual. É preciso segurança para não ocorrer contaminação cruzada. Temos equipe no Brasil garantindo o processo. Os xaropes estamos produzindo 80% no País.

M&M — Quais são os fatores que estão atraindo um público maior para os alimentos de base vegetal?
Luiz — Vejo macro tendências juntas. As pessoas começam a entender claramente que a saudabilidade do corpo tem mais a ver com o que come e como come, do que com a meia hora de academia de manhã. A turma está olhando para a crueldade animal, o aquecimento global, a poluição, as mudanças climáticas… tudo desaguando no mesmo lugar, no sistema alimentar que precisa mudar. Somos quase oito bilhões, cada um tomando um copo de leite por dia e a vaca no melhor da produção, o que ela consome de soja e milho para viver, e o que ela nos fornece, as proporções que necessitamos de bovinos, suínos e avinos, mais a área plantada, não cabem na Terra. Todo segmento em que se vê algo ilógico, cabe a disrupção. A alimentação tem relação com o cérebro mais primitivo, é quase dependência. Embora entendam, as pessoas não querem trocar o que comem. Precisamos de dois pontos: produtos saborosos e gostosos, que satisfaçam a memória afetiva, e preço, que é muito importante. A cadeia tributária não é equitativa, bebidas vegetais são mais tributadas do que o leite. A NotCo não tem escala, a melhor forma é reduzir a tributação, no mínimo, ter equidade. Na Europa e nos Estados Unidos a discussão já é ser menor. Se tem sabor e preço, acelera o tamanho do mercado. A necessidade já está aí, falta acessibilidade. Queremos vender leite vegetal com preço de leite. Tudo o que é vegetal é sem colesterol. Se é bem feito, encontra tabela nutricional, o mesmo sabor e textura com digestibilidade melhor. Consumidores precisam estudar propostas, ler os rótulos.

M&M — Quais são os desafios de uma food­tech do ponto de vista da comunicação e do marketing?
Luiz — O desafio é enorme, pois o País tem dimensões continentais e precisamos fazer a marca conhecida, seus ideais, seu posicionamento, fazer as pessoas entenderem isso no curto prazo. Temos um time de marketing local. Temos algumas agências parceiras, mas temos uma agência dentro de casa (NotAgency). Fazemos a gestão das redes sociais e da mídia, e também temos designers dentro de casa. Acreditamos que faríamos com a própria linguagem bem feito, por isso o modelo de internalização. O restaurante Why Not, por exemplo, também é uma atividade de marketing. Abacaxi, chicória e repolho não têm apetite appeal. Temos produtos diferentes do que está no mercado mundial, temos que provar e quando provamos, nos surpreendemos. Experimentação é caminho de construção de marca. Quando prova, se surpreende e entende. O desafio é a experimentação de massa e entender o que propõe, que o sistema alimentar está quebrado e algo precisa ser feito em conjunto. Faremos um bem enorme à humanidade. Em 2050, 2070, será impossível atender a alimentação da população mundial. Queremos que as pessoas se deem conta de que o sistema alimentar está exaurido. Se mudar, não é obrigado a perder a experiência que tem com o alimento.

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