Experiências sob demanda

Dos festivais de música e eventos online ao streaming de filmes e séries, os hábitos de lazer passam por todas as telas e são impactados pelas estratégias de inteligência de dados

Por Bárbara Sacchitiello e Thaís Monteiro

Em 2023, o setor de mídia e entretenimento deverá movimentar cerca de de US$ 2,6 trilhões em todo o mundo. A projeção foi feita em 2019, como parte da pesquisa Media & Outlook Entertainment, realizada anualmente pela consultoria PwC. Por conta dos desdobramentos da pandemia da Covid-19, a edição de 2020 do estudo, que faz um levantamento no potencial financeiro do segmento em 53 países, ainda não foi divulgada. Mesmo assim, os dados da edição mais recente atestam uma tendência que já vem se acentuando nos segmentos de vídeo, cinema, música, games, streaming, esportes e outras vertentes do entretenimento: a maior parte desse montante será proveniente do consumo digital.

Se já transcorria em ritmo acelerado, a digitalização da indústria do entretenimento acabou tendo na pandemia uma mola propulsora. A Netflix, maior empresa de streaming do mundo, teve o melhor trimestre de sua história no início de 2020, ao agregar 16 milhões de novos assinantes, chegando à marca de 183 milhões de clientes em todo o planeta. A necessidade de ficar em casa — e, portanto, de buscar novas opções de entretenimento dentro do lar — impulsionou também os players nacionais de vídeo sob demanda. A Globo viu o número de assinantes do Globoplay, sua plataforma de streaming, dar um salto de 150% no primeiro trimestre. A empresa, inclusive, já celebra que a meta de assinantes prevista para todo o ano de 2020 foi batida no último dia 20 de julho, de acordo com Erick Brêtas, diretor de produtos e serviços digitais da Globo.

Independente da área do entretenimento em que esteja situada — música, TV, games, shows ou experiências — as empresas mais tradicionais do segmento já vêm, há algum tempo, incorporando um vocabulário cada vez mais tecnológico. A conversa que, por décadas, girou em torno da telinha, passou a corresponder à diferentes plataformas. De início, essa digitalização chegava até a ser vista como uma ameaça ao negócio, como lembra Marcela Doria, vice-presidente de data & dnsights da WarnerMedia na América Latina e co-manager da WarnerMedia no Brasil. “Fomos um dos primeiros canais a colocar nossos conteúdos nas redes sociais e YouTube sabendo que, em vez de prejudicar nosso negócio regular de TV, seria uma ponte que aumentaria nossa relação com o espectador”, relembra. Hoje, todas as estratégias de conteúdo do conglomerado internacional de mídia (que no Brasil opera as marcas Cartoon Network, TNT, Space, TBS e Esporte Interativo) estão pautadas no conhecimento mais aprofundado do consumidor, para entender não apenas quantas pessoas receberam aquela mensagem, mas qual foi o efeito que ela causou em cada uma delas. “Mais do que chegar ao consumidor final, o conteúdo tem que ser relevante. Estamos na era do alcance de qualidade. Hoje, são os dados que garantem a relevância de um certo conteúdo ou mensagem, pois tudo é mensurável e controlável. Os dados gerados pelo próprio consumidor é o que nos alimenta a sermos ainda mais relevantes para eles próprios”, explica a executiva.

Marcela Doria, da WarnerMedia: presença e conhecimento da audiência são a chave

Os dados também são a fonte principal de alimento do Telecine, marca que nasceu na década de 1990 como canal de TV por assinatura e que vem, nos últimos anos, moldando-se para se tornar um hub de cinema. “Hoje, o grande foco da empresa é o investimento em tecnologia e inovação. Transformamos o Telecine em uma empresa media tech com DNA data-driven, pois queremos modificar a jornada do usuário, seja nos canais lineares ou na nossa plataforma de streaming”, coloca o diretor-geral Eldes Mattiuzzo.

Apesar de calcada na tecnologia e direcionando boa parte de seus investimentos ao seu serviço de streaming, a marca acredita na coexistência de diferentes experiências de consumo. “As pessoas estão ávidas por entretenimento e vejo o interesse por streaming se naturalizando após o período de isolamento social, como um complemento a outras formas de lazer. A indústria do entretenimento sempre terá relevância na vida das pessoas”, acredita.

Novos modelos
A grande demanda por serviços de streaming, trazida por gigantes Netflix, Prime Video, HBO — e também por players nacionais como o próprio Telecine e Globoplay — abriu caminho para que outras empresas experimentassem plataformas de diferentes estilos e modelos de negócio. Em 2017, o empresário Mauricio Almeida pensou em uma alternativa para competir no setor de TV paga e estruturou a Watch Brasil, plataforma de streaming que comercializa assinaturas em parcerias com operadoras regionais de internet banda larga.

Depois de firmar acordos com a Universal e com o portal UOL, para a exibição do conteúdo do UOL Play, a Watch Brasil encontrou na pandemia uma oportunidade de experimentar outra solução de conteúdo. A plataforma foi escolhida pela Warner Bros. para ser a janela de estreia do longa-metragem Scooby! O Filme. “Por conta da pandemia esse grande lançamento se dará diretamente no streaming. Creio que a janela de exibição entre o cinema e o streaming tende a ser menor. Se antes, passava de 90 dias o tempo em que um filme saía dos cinemas e chegava às plataformas, após a pandemia esse prazo será bem menor. As plataformas se tornarão uma extensão das salas dos cinemas”, projeta Mauricio.

Nascida como um canal de TV paga na década de 1990, Telecine investe em streaming e canais para ser vista como um hub de cinema

Enquanto a Watch Brasil oferece ao usuário um serviço baseado em pagamento de assinatura mensal, a Vix, plataforma de distribuição de conteúdo via redes sociais, se prepara para lançar no País a Vix TV, sua plataforma de streaming gratuita, financiada por veiculação publicitária. Já presente na América do Sul e hispânica com uma biblioteca de mais de 20 mil horas de conteúdo, a plataforma da Vix aposta na atração do espectador pelo consumo gratuito. “O fato de as pessoas cada vez mais consumirem conteúdo em streaming trouxe também um desafio para as marcas. Antes, para falar com as pessoas, bastava uma comunicação de massa na TV. Mas como fazer se boa parte da audiência migrou para as plataformas de streaming via assinatura?”, questiona Rafael Urbina, CEO e chairman da Vix. A resposta a essa pergunta, na visão do executivo, está no modelo do VOD monetizado com publicidade. “Por mais que a TV paga tenha uma grande penetração em mercados como o dos Estados Unidos, a realidade é que boa parte dos consumidores da maior parte dos países não têm condições de assinar tantos canais e serviços. Então, o advertising no streaming surge como uma opção de lazer, ao mesmo tempo em que cria uma oportunidade para as marcas se conectarem com seu target, sobretudo com o público mais jovem”, acredita.

Com os cinemas fechados, Scooby! o Filme chega ao público pelo app Watch Brasil

Para as empresas oriundas do universo digital, o experimento de modelos de negócio acaba sendo parte da própria evolução do player. Isso não significa, no entanto, que aquelas estruturadas sob os modelos mais tradicionais de distribuição de conteúdo não estejam passando por um processo de reorientação. Nascida poucos anos depois da chegada da televisão no Brasil, em 1958, a Record já vem, há anos, defendendo um posicionamento de produtora de conteúdo multiplataforma. A adesão às tecnologias e intersecção dos meios, no entanto, tornaram-se ainda mais necessárias diante dos abalos do coronavírus, como revela Bia Cioffi, diretora de planejamento transmídia da Record TV. Neste ano, o departamento passou a fazer parte da área da TV, justamente para aproximar as estratégias digitais dos conteúdos. Dessa estratégia, saíram projetos como a websérie Chá das Três e o programa de culinária Rango em Casa. “Acredito que o maior desafio é mudar a forma de pensar das pessoas, projetando conteúdos que já nasçam digitais, e isso já está acontecendo na Record TV. Com essa conectividade acelerada pelo confinamento, o público ganhou ainda mais protagonismo, voz nas redes e presença e é preciso que a gente traga essa audiência para criar junto. É um novo patamar. As pessoas querem se relacionar com as empresas, com as marcas, com as celebridades e querem se ver representadas”, analisa a executiva.

Criar sob essa perspectiva multiplataforma também demanda um alicerce sólido de inteligência de dados, que alimenta as empresas que compõem o ecossistema do grupo (Record TV, R7, Record News e PlayPlus e seus respectivos perfis nas redes sociais). “Cada conteúdo ou programa performa de maneira diferente para diferentes públicos. Nosso desafio é entregar o conteúdo da melhor forma para cada um deles. Quando reformulamos o portal R7, fizemos uma extensa pesquisa para análise de dados. Por isso, investimos em agilidade, redesenhamos editorias, criamos novos verticais e apostamos em mais conteúdo ao vivo e em um cenário que atendesse prioritariamente o consumo mobile”, exemplifica Claudia Caliente, diretora executiva multiplataforma do grupo. Segundo ela, a audiência televisiva do País já adota um comportamento multitela e não-linear. “Se analisarmos o comportamento dos mais jovens e das crianças, essa preferência fica clara. Funciona como um catálogo: escolhem pela imagem, título e consomem quando quiserem”, complementa Claudia.

De volta para o passado?
Se a quarentena se mostrou como uma oportunidade para o mercado televisivo e plataformas de streaming, ela trouxe, por outro lado, muitos questionamentos à indústria do cinema. Cadeiras mais espaçadas nas salas, sessões vazias e estreias de filmes diretamente nas plataformas digitais — como o longa Trolls 2 — começam a aparecer no novo quadro global dos cinemas. Até o Oscar, a premiação mais importante da indústria, flexibilizou a regra que obrigava um filme a ser exibido em sala para ser avaliado pela Academia, como uma medida para abraçar as produções lançadas digitalmente.

Nesse contexto, uma forma antiga de assistir a filmes — o drive-in, popular nas décadas de 1950 e 1960 — explodiu com certa rapidez. Só na cidade de São Paulo, já foram criados ao menos cinco espaços, que recebem carros com até quatro pessoas para sessões de filmes já lançados. Um desses drive-ins está no Allianz Parque, estádio do Palmeiras. Por lá, a Arena Sessions, além de filmes, recebe shows e espetáculos de stand-ups.

A ideia de promover diferentes formatos de entretenimento no estádio não é propriamente nova. A casa do Palmeiras já realizou palestras da plataforma TED e inúmeros shows, mas a pandemia foi um gancho para novos formatos. Além de filmes, o espaço recebeu uma final do jogo de videogame FIFA, palestras, apresentações infantis e shows de stand-up. “Criamos no final de 2019 um departamento de inovação totalmente focado em trazer novos negócios para a Arena. Temos tido muitas idéias e feito benchmarking no mundo, independente mente da pandemia. Obviamente em momento de crise a inovação é fundamental para manter o negócio focado em possíveis novas fontes de receita. O Arena Sessions traz, além de faturamento, esperança para o mercado do show business”, descreve Marcio Flores, diretor de marketing e inovação do Allianz Parque.

A agenda de entretenimento está com programação até 20 de setembro. Com a retomada gradual das partidas de futebol, o estádio está conciliando ambos os calendários. Na opinião do executivo, os drive-ins vão, eventualmente, deixar de ser protagonistas, mas isso não significa que o Allianz Parque descartará a atração no médio e longo prazo. “Provavelmente, encontraremos períodos na agenda para voltar com esse formato”, pontua.

Embora acredite que a febre do drive-in passará, diretoria do Allianz Parque quer manter formato como opção de experiência de lazer

A proposta das sessões dentro dos carros, contudo, não é vista como algo promissor pelo Cinépolis, rede de salas de exibição com presença em diversas cidades brasileiras. Embora ainda esteja com as sessões fechadas, a empresa não foi seduzida pela ideia dos drive-ins. “Não vemos como uma tendência, mas como uma oportunidade de entretenimento circunstancial, que não substituirá o cinema”, aponta Juliano Russo, diretor de marketing e comercial da Cinépolis Brasil. Como tendência, a rede vê a continuidade dos investimentos em experiências e em tecnologia. “No futuro bem próximo vemos que a experiência poderá ser mais personalizada. Entenderemos cada vez melhor os hábitos de nossos espectadores, saberemos que gêneros, tipos de sala ou horários ele prefere e nos adaptaremos a oferecer opções dentro dessas demandas”, diz.

Experiência, aliás, é uma palavra-chave na indústria de entretenimento. Ainda que se trate de um universo que habita telas, quadrinhos e outros meios, o ato de estar presente e inserido em algo ainda é, muitas vezes, o elemento diferencial, como ver de perto um ídolo, receber um autógrafo dele ou ouvi-lo tocando ao vivo; entrar em cenários de séries e filmes; participar de jogos e ativações de marcas ou se fantasiar para um cosplay. Essas são partes da experiência que compõem grandes eventos, como Anime Friends, Tommorowland, Lollapalooza e CCXP.

Levante a mão para aplaudir

Da mesma forma que o cinema e indústria da música perderam seus palcos convencionais, o teatro também foi afetado. Alguns grupos, no entanto, já começam a encenar suas peças em salas de videoconferência: cada ator em sua casa, interagindo com os objetos a seu dispor, em cenários formados por imagens digitais. Entendendo que o teatro, recitais de poesia, shows de stand-up comedy, apresentações de dança, espetáculos infantis e demais formas de arte e educação — como pocket shows e aulas de gastronomia e yoga — deveriam ter um espaço na disrupção digital, os sócios Orlando Morais e Dio Trotta lançaram, no início de agosto, a ShowIn, uma plataforma streaming de apresentações ao vivo. No ambiente, é possível adquirir ingressos para as apresentações culturais, além de comprar e doar Winns, a moeda oficial da plataforma.

Na percepção de Bruno Levinson, responsável pela curadoria artística do ShowIn, a característica marcante dos encontros físicos se mantém no streaming. Segundo o curador, um dos traços principais do ser humano é a capacidade de ouvir histórias e isso está preservado nos encontros tecnológicos.

“O mais importante é a roda de conversas, seja ela no presencial ou no digital. Evidente que no presencial existe o toque, o cheiro. Mas vai que, já já, a tecnologia também nos ofereça esta experiência?”, brinca.

Na visão do sócio Dio Trotta, mesmo depois da retomada das atividades de lazer, o streaming vai se consolidar como um espaço de intercâmbio cultural e de conexão de pessoas de diferentes cidades e países.

Ao vivo, de qualquer lugar
Tendo no horizonte a perspectiva de uma retomada lenta, segundo projeções da Bain Company, o entretenimento de experiência procurou manter o relacionamento com o público por meio de edições virtuais. Alguns desses grandes eventos citados foram adiados ou realizados digitalmente. O festival de música eletrônica Tomorrowland teve sua programação realizada digitalmente em junho e a CCXP usará a mesma fórmula em dezembro.

Na perspectiva de Roberto Fabri, diretor de marketing da Omelete Company, proprietária da CCXP, experiências físicas são muito importantes para o universo geek, pois unem o que ele denomina “collective joy” (a sensação de pertencimento ao estar com pessoas que compartilham os mesmos gostos) e “where the dreams come true” (a materialização de tudo aquilo que foi consumido ao longo da vida). “As pessoas não veem mais a barreira entre o digital e o real — hoje em dia as coisas simplesmente são o que são. Se por um lado o entretenimento sofreu pelas restrições da pandemia, o home entertainment ganhou um protagonismo quando todos ficaram em casa, assistindo a séries, lendo, jogando videogames e acompanhando as lives. A CCXP é sobre isso. Estamos junto com o fã o tempo todo e, se o único lugar possível em 2020 é o digital, é lá que estaremos”, afirma. A edição digital terá como tema “CCXP: A Journey of Hope” (“Uma Jornada de Esperança”, na tradução).

O executivo ressalta que o mercado de eventos já contava muito com o digital nas transmissões e transações cashless, mas acredita que a pandemia deve deixar, como legado, a transmissão online, seja ela aberta ou fechada, e a disponibilização ou monetização do conteúdo no VOD pós-evento. “Foguete não tem marcha ré. O digital nunca mais deixará de fazer parte da estratégia de um evento ou festival. Descobrimos da maneira mais penosa que, mesmo diante de uma pandemia global, é uma das poucas coisas que continuam operantes”, reconhece.

As premiações de TV também começam a adotar uma experiência híbrida, que envolva plateia e transmissões no digital. No Brasil, as primeiras experiências anunciadas nesse formato foram da ViacomCBS, com o Meus Prêmios Nick, que acontece em setembro, e o MTV Miaw, da MTV, ainda sem data definida. Mais para o final do ano, quando a temporada de premiações começa no Brasil e no começo de 2021, nos Estados Unidos, outras celebrações da música, televisão e cinema devem seguir o mesmo caminho.

Distanciamento social impulsionou produções digitais e multitelas no ecossistema da Record, como o programa Rango em Casa

A visão da programadora sobre a adaptação para o digital é mais agnóstica, como descreve Ari Martire, diretor sênior de brand solutions e ad sales da ViacomCBS Brasil. Segundo o executivo, a distinção entre TV e digital não é algo que preocupa, pois tudo produzido pelos canais já é pensado para ambos os meios e, com a pandemia, o que mudou foi a compreensão de adaptação contínua. Para Martire, eventos televisivos são grandes combustíveis para os assuntos que acontecem no mundo digital e a Covid-19 acelerou este processo. “Um exemplo disso é que não apenas eventos ao vivo na TV são os grandes assuntos nas redes. De reprises de novelas e jogos de futebol de décadas passadas até maratonas de reality shows viraram assuntos quentes nas redes sociais”, afirma.

Para realizar as premiações, a empresa tem um comitê internacional de segurança que prevê a adoção dos protocolos locais. “São nos eventos físicos de gravação que conseguimos juntar fãs, artistas, audiência e marcas parceiras em uma grande celebração. O calor da plateia junto aos seus artistas favoritos é sensacional e, ao mesmo tempo, imprevisível, o que sempre adiciona um tempero bom. Mas também entendemos que, para as nossas comunidades, importa muito o sentimento de compartilhar uma experiência ao vivo, mesmo que à distância. Ver na TV e ou na internet e ainda poder interagir via redes sociais é algo que move nossa audiência”, argumenta.

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