Aula disponibilizada, aula estudada
Pandemia impacta diretamente a transformação digital no setor de educação e atende demandas dos alunos da nova geração
Pandemia impacta diretamente a transformação digital no setor de educação e atende demandas dos alunos da nova geração
Por Karina Balan Julio e Thaís Monteiro
Entre os diversos setores impactados pela pandemia da Covid-19, a educação, certamente, foi um dos que mais teve de acelerar seus processos de digitalização. Instituições dedicadas ao infantil até aquelas que oferecem variados cursos de especialização precisaram tornar remota e digital suas metodologias de ensino em um curto espaço de tempo.
As reflexões sobre novos formatos de estudo, no entanto, já vinham acontecendo bem antes da pandemia, e, com ela, a noção dos alunos sobre o papel da educação formal e informal, as melhores formas de estudar e a jornada de aprendizagem também mudou. A pesquisa Global Learner Survey, da Pearson, empresa inglesa de educação com presença em 70 países, mapeou a percepção dos estudantes sobre o impacto da pandemia na educação e suas expectativas sobre o futuro da aprendizagem.
Feita com sete mil pessoas na faixa etária de 16 a 70 anos, em sete países (sendo mil entrevistados no Brasil), a pesquisa, lançada neste mês, descobriu que 90% dos estudantes creem que haverá maior presença do formato online no ensino básico e superior daqui em diante. Ainda, 80% acreditam que os ensinos fundamental, médio e superior mudarão fundamentalmente após a pandemia.
Em um momento de crise, 70% dos respondentes globais disseram ver a educação formal como um importante impulso para o sucesso na vida de uma pessoa — índice que é ainda maior no Brasil: 84%. O estudo foi conduzido em parceria com o instituto Harris Insights & Analytics.
Um dos destaques do levantamento diz respeito às expectativas dos estudantes em relação às universidades e faculdades, que encaram o desafio de adaptar suas grades de ensino às demandas atuais. Entre os brasileiros, 67% acreditam que as instituições de ensino não estão em sintonia com as necessidades dos estudantes. Ainda, 88% dos brasileiros dizem que as universidades precisam fazer mais no sentido de treinar e requalificar trabalhadores desempregados — seja através de cursos curtos ou de alternativas de menor custo. Enquanto isso, a confiança no ensino profissionalizante está crescendo: 68% dos brasileiros afirmam que uma formação desse tipo tem mais chances de levar a um bom emprego do que um diploma universitário.
Outra tendência apontada pela pesquisa da Pearson é a ascensão do ensino “self-service”, no qual alunos vão moldando seu currículo conforme suas necessidades, ao mesclar educação formal e iniciativas de formação curtas e pontuais. No Brasil, especificamente, nove em cada dez respondentes disseram que as pessoas precisarão assumir maior responsabilidade sobre o que aprendem para suas carreiras. “Estamos vendo a modificação do entendimento sobre o ciclo de aprendizagem. Para as gerações mais velhas, era comum pensar que as pessoas teriam o momento para estudar enquanto crianças, adolescentes e jovens adultos, e, depois, parariam de estudar. Este ciclo bem definido não existe mais, o que muda a percepção sobre educação. Todo mundo já entende que precisará se manter estudante por toda a vida”, analisa Alexandre Matiolli, diretor de produtos de educação básica e ensino superior da Pearson Brasil.
Melhorias no ensino online
Apesar de reconhecerem que o ensino a distância veio para ficar, estudantes esperam melhorias nessa modalidade. Cerca de 75% dos brasileiros consultados disseram que as instituições educacionais são menos eficazes no uso da tecnologia do que outros setores, como o de saúde e o bancário. Quando questionados sobre o direcionamento de investimentos públicos em educação, os participantes destacaram a necessidade de disponibilizar tecnologia para estudantes desfavorecidos e de preparar escolas para o ensino online.
Entre os brasileiros, 78% dos respondentes estão preocupados com a possibilidade de que a pandemia aprofunde a desigualdade entre estudantes do ensino básico. No País, 74% das pessoas acreditam que o ensino online tem o potencial de ampliar o acesso à educação de qualidade, mas 90% enxergam que nem todo mundo tem acesso à tecnologia necessária para aprender por meio dessa modalidade.
Em algumas instituições de ensino superior, a adoção do ensino a distância (EAD) já estava em curso. O formato é estudado desde o final da década de 1990. Por isso, a adaptação não foi necessariamente dificultosa. O que aconteceu, durante a pandemia,foi a adaptação dos cursos presenciais para o modelo remoto “Antes mesmo de sermos atingidos pela pandemia, já estávamos caminhando nessa direção, e com o cenário da Covid-19, a transformação precisou ser mais intensa e mais rápida”, declara Marco Tullio Castro Vasconcellos, reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Na universidade, as ações empregadas no ensino remoto envolveram garantia da saúde e bem-estar dos docentes e discentes, assim como treinamento e investimento em tecnologia, em mudanças no calendário para atender às novas necessidades, estruturação de métodos de ensino síncrono (quando professor e aluno estão na aula ao mesmo o tempo) e assíncronos, aquisição de 3,5 mil chips de celulares com pacotes de dado de internet para alunos bolsistas e prounistas e a criação de um projeto para a volta às aulas presenciais quando elas ocorrerem. O Mackenzie afirma que os cursos em EAD já eram importantes na universidade antes da pandemia e há uma tendência de crescimento, mas não necessariamente em função da situação de isolamento atual.
“Os próximos anos serão desafiadores. Não sabemos com precisão a extensão dos problemas da pandemia, como ela afetará as famílias, quanto tempo perdurará, nem mesmo quantas ondas pandêmicas ainda teremos de enfrentar. Além disso, vivemos em uma sociedade altamente tecnológica, com mudanças profundas e rápidas, e em mundo cheio de desafios de natureza, social, econômica, ambiental, política, moral, que demandarão uma educação que dê conta de toda essa complexidade. Em função disso, a formação dos professores será ainda mais crucial”, projeta Vasconcellos.
Os 20 anos em que a Kroton (proprietária de instituições como Anhanguera, Fama e Pitágoras) passou operando cursos em EAD garantiu que o grupo estivesse preparado para migrar os cursos presenciais para o digital, de acordo com Marcos Lemos, vice-presidente acadêmico da empresa. Segundo ele, a mudança para o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) da instituição foi realizada em um dia. Da mesma forma que nas aulas padrões, as disciplinas são ministradas de forma síncrona e há material de apoio multimídia.
“No ensino superior, registramos um crescimento de 25% no indicador de engajamento acadêmico em relação ao mesmo período do ano anterior e um aumento de 5% com relação ao semestre anterior. Vale mencionar que o nosso índice de satisfação em relação a qualidade do conteúdo ministrado foi de 9,39”, informa o VP acadêmico. Recentemente, a Kroton lançou cursos de graduação 100% online nas áreas de tecnologia para formação de desenvolvedores e licenciatura em educação especial, focada na formação de educadores capacitados a atender alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades.
Apesar de oferecer disciplinas online desde 2006 e graduações 100% a distância desde 2009, a Estácio afirma que a pandemia contribuiu para uma evolução nos serviços oferecidos. “Antecipamos investimentos em tecnologia e planos que estavam em desenvolvimento. A sala de aula mudou e, a partir da imersão digital provocada pela pandemia, a instituição revisitou o seu modelo de ensino, inserindo atividades de campo e trazendo mais tecnologia para professor e aluno”, conta Adriano Pistore, vice-presidente de operações presenciais da Estácio. Um dos formatos mais inusitados a ser transformado em digital, segundo o executivo, são as colações de grau, formaturas e apresentações de TCC. Outras experiências relacionadas ao digital devem continuar mesmo após a retomada do ensino presencial.
Assim como há desafios de comportamento do aluno e acessibilidades via educação a distância, as instituições reconhecem também benefícios na dinâmica do ensino online. Na percepção da Kroton, uma das vantagens é o maior acesso à educação, já que o ensino pode alcançar locais onde as instituições não estão presentes, alcançando pessoas que não possam fazer um curso presencial por conta da rotina ou dificuldade de locomoção. “Em situações de excepcionalidade, como em períodos de guerra e em grandes crises, a busca por novas soluções e processos torna-se ainda mais vigorosa. A disrupção, como se diz, é quase que inevitável. Caminhamos para uma mudança de comportamento e hábito que envolverá todos os atores desse processo”, opina Lemos.
Para a Estácio, o comprometimento do aluno também passa por alterações. O grupo considera que os estudantes, sobretudo os mais tímidos, começam a interagir mais frequentemente via digital e o formato dialoga com a própria geração que está cursando seu ensino superior no momento. “Acreditamos que o modelo proposto, familiar a muitas experiências que o aluno tem em sua própria rotina, foi fundamental para o sucesso do projeto. Não existe impacto e distância quando nosso aluno interage com o professor em tempo real, tira dúvidas, participa ativamente da aula, troca informações com os colegas, enfim, assume seu protagonismo no processo de ensino aprendizagem”, opina o vice-presidente de operações presenciais.
Nativos digitais
Enquanto alguns players do segmento tiveram que adaptar suas rotinas e metodologias de trabalho de última hora, serviços de educação que nasceram no digital sofreram um boom de procura nos meses de isolamento social. O Descomplica e o Stoodi, duas empresas do setor que oferecem serviços de educação online e, em sua maioria, preparatórios para vestibulares e concursos, decidiram disponibilizar sua estrutura e know-how para ajudar a sanar o problema de acessibilidade à educação digital no Brasil.
Em maio, o Descomplica fechou uma parceria com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para disponibilizar seu conteúdo de ensino médio por meio da TV Cultura e do aplicativo Centro de Mídia SP, como aulas gravadas e ao vivo, material de apoio e plataforma de exercícios. A ação impacta 1,5 milhão de alunos e 40 mil professores. Já a Stoodi lançou o projeto Stoodi de Portas Abertas, em que liberou seis mil videoaulas e cerca de 30 mil exercícios gratuitamente para alunos do ensino médio. A ação já impactou 1,3 milhão de alunos pelo País. Atualmente, a empresa busca parceiros para ampliar o projeto. “Ficou escancarada a dificuldade dos alunos no Brasil de conseguirem acesso à educação de qualidade de maneira remota, por conta de duas principais dificuldades: a curadoria de conteúdo qualificado e acesso à internet”, assegura Bernardo Martins, CEO do Stoodi.
Na percepção dessas empresas, que já trabalham com o EAD desde 2011 e 2013, respectivamente, os desafios do formato são parecidos com o do ensino presencial. “Os professores e instituições de EAD, bem como ocorre aos envolvidos no ensino presencial, também precisam criar formas de manter o aluno focado no conteúdo que está sendo passado. No caso do Descomplica trabalhamos com metodologias variadas, como vídeos, lives, plataformas de exercícios, entre outros”, descreve Marco
Fisbhen, CEO do Descomplica.
A Stoodi investe em conceitos da neurociência e design instrucional para ajudar o aluno a associar novos aprendizados ao seu cotidiano. Martins defende que uma videoaula tem que criar uma experiência que se difere do presencial e ser pensada e planejada para atrair e atender as expectativas de diferentes demandas de públicos. Extrapolando os benefícios associados à acessibilidade e flexibilidade que o ensino online é capaz de oferecer, o executivo destaca que aulas virtuais podem servir como estratégias de negócios. “A possibilidade processar milhares de dados para entregar o conteúdo mais adequado a cada aluno é um exemplo de um benefício que seria inviável sem o auxílio da tecnologia. Além disso, os estudantes de hoje, denominados nativos digitais, cresceram em meio a essa nova e abundante tecnologia, o que, por si só, já provoca a necessidade de se pensar em estratégias utilizando experiências digitais para um maior engajamento”, explica.
Ambas as empresas consideram o investimento acelerado que o setor teve de fazer como uma oportunidade de mostrar o valor da digitalização para o ensino. “A importância de se resguardar e ter processos adaptáveis ao modo online ficou em evidência a todos os envolvidos do setor. Acreditamos que podemos aprender muito com as demais instituições que estão investindo no digital, da mesma maneira que podemos compartilhar a nossa expertise com eles”, explica Fisbhen.
Antes disso, a transformação digital era vista com desconfiança e resistência por educadores. Na visão do Descomplica, o fato de hoje ela ser mais bem aceita justifica o preenchimento das vagas no lançamento da Faculdade Descomplica, realizado em meados deste mês. A instituição traz os quatro cursos mais procurados por EAD (pedagogia, administração, contabilidade e gestão de pessoas). As aulas não são gravadas, mas possuem uma duração mais curta, para ajudar a reter a atenção dos estudantes e os conteúdos são enxutos para que os alunos extraiam o máximo de conhecimento sem perder o foco.
“Olhando para o nosso dia a dia, estamos cercados pelo digital, com soluções que nos auxiliam nas mais diversas tarefas, do trabalho ao lazer. Na educação esse processo está muito atrasado, mas ganha uma nova perspectiva para os próximos anos com soluções de aprendizagem que se complementam às experiências presenciais, do ensino básico até a educação continuada”, propõe o CEO do Stoodi.
Um olhar sobre criatividade e soft skills
Mais do que contemplar o currículo básico de disciplinas básicas, como matemática, raciocínio lógico, história, biologia e interpretação de texto, as instituições e players de educação têm se debruçado sobre disciplinas mais subjetivas: as soft skills.
Habilidade social, de comunicação e direcionamento para a resolução de problemas são apontadas como essenciais para estudantes de todas as faixas etárias. Segundo a pesquisa da Pearson, 91% dos brasileiros acham que as pessoas terão que aprender soft skills como pensamento crítico, criatividade e resolução de problemas, além de habilidades digitais, como colaboração e comunicação virtuais e gestão de times remotos.
Não por acaso, há um crescimento vertiginoso de escolas e cursos com foco em soft skills. Empresas como Perestroika, escola Conquer, School of Life e Descola fazem parte de um ecossistema emergente de educação dedicado a ensinar desde inteligência emocional e comunicação assertiva, até adaptabilidade e resolução de problemas complexos.
Uma dessas escolas é a Sputnik, braço de educação B2B da Perestroika, escola focada em metodologias criativas. Comandada pela publicitária Mariana Achutti, que foi diretora da Perestroika durante dez anos, a Sputnik leva até empresas cursos ligados a soft skills, liderança e habilidades do futuro. “Há dez anos vivíamos um processo educacional muito formal, e nossa ideia era mostrar que aprender podia ser um processo mais gostoso. Hoje, a educação é um mercado muito diferente e mais disruptivo como um todo”, analisa Mariana.
Com a Sputnik, a ideia é levar metodologias de ensino mais interessantes para profissionais de empresas, onde os alunos sejam mais protagonistas do processo de aprendizagem. “O profissional de hoje precisa de muito jogo de cintura e soft skills para sobreviver na crise. Precisa de criatividade, liderança, diálogo e saber resolver problemas complexos. Vimos que havia muitas escolas de educação corporativa, mas a maioria não conversava com os desafios e necessidades atuais das empresas”, explica.
A Sputnik já atendeu empresas como Google, Red Bull e Facebook. Diante da pandemia, decidiu criar um curso de autogestão para home office, considerando que a maioria das empresas e profissionais não tinham as ferramentas necessárias para fazer a adaptação para o trabalho 100% remoto.
Para Mariana, as empresas do setor devem investir em uma boa curadoria de conhecimento, mais do que em apenas uma boa experiência “em classe”. “O aluno pode aprender não só na aula, mas ouvindo um podcast, acessando um documentário, eBook ou com uma experiência em VR. O desafio das empresas é pensar em uma jornada de aprendizagem híbrida e flexível, na qual o aluno acesse o conteúdo que fizer sentido e quando fizer sentido para ele”, diz.
Educação para o trabalho
Com o universo do trabalho mudando rapidamente, o setor de educação tem de se movimentar, também, para atender às demandas de empregabilidade em um mundo digital. Segundo a pesquisa da Pearson, 76% dos brasileiros dizem que a pandemia da Covid-19 os levou a repensar suas trajetórias profissionais, e 59% temem que terão que mudar de carreira por causa dela.
Para Naercio Menezes, professor do Insper que analisa a relação entre educação, mercado de trabalho, produtividade, tecnologia e desemprego, o momento atual terá consequências negativas principalmente para os jovens que estão entrando no mercado de trabalho agora — o que exigirá um olhar cuidadoso por parte das instituições de ensino e players de educação. “Historicamente, quando analisamos períodos de recessão, vemos que o jovem que chega ao mercado de trabalho nesses momentos tende a ter o salário mais baixo durante toda a vida, em comparação com jovens com a mesma escolaridade e que iniciaram a carreira antes das crises”, analisa.
Além do fator Covid-19, a tecnologia precisa estar no radar das empresas de educação. Um estudo feito por Carl Frey e Michael Osbourne, futurólogos da Universidade de Oxford, estima que, até 2030, dois bilhões de empregos podem deixar de existir globalmente por conta da automação de profissões. Diante disso, as perspectivas sobre o papel da educação também muda, e as pessoas terão que aprender a reaprender constantemente.
“Fora do Brasil, já há empresas começando a contratar com base em critérios alheios à faculdade e experiência. Com isso em mente, o ensino superior terá que ser repensado, pois não fará sentido ficar cinco anos em um curso de graduação para se formar em uma profissão em que não haverá postos de trabalho”, pontua Claudia Costin, diretora do centro de excelência e inovação em políticas educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.
Claudia prevê um setor de educação que integrará diversos players tradicionais e inovadores. “Veremos o surgimento de ecossistemas educacionais que integram escolas, universidades, iniciativa privada e iniciativas pontuais de educação”, analisa.
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