Consciência em cadeia

Heloisa Guarita, sócia-fundadora e CEO da consultoria RG Nutri, analisa as transformações, os desafios, as soluções e as tendências do mercado de foodtech

Por Débora Yuri

Conhecida no meio como smart money — a pessoa que traz não só dinheiro, mas conhecimento às startups —, Heloisa Guarita assume papéis diferentes para promover inovação na alimentação. Há 30 anos neste ramo, é investidora-anjo e sócia-fundadora e CEO da RG Nutri, consultoria que assessora fabricantes como BRF, Bauducco e Tirolez. Com a experiência de 20 foodtechs investidas, Heloisa analisa, a seguir, transformações, desafios, soluções e tendências do mercado.

Meio & Mensagem — Quais foram as principais transformações que as foodtechs provocaram no mercado?
Heloisa Guarita — A primeira é a aceleração do digital, que inclui o pensar muito rápido. Todas as grandes empresas tiveram que se mexer. E a segunda é repensar o food system. Toda a cadeia ficou mais valorizada, agora se olha do plantio ao fornecedor. Questões de clima, de sustentabilidade, ganharam outro peso. As startups otimizam processos, melhoram o plantio, trazem o produto para perto do consumidor, cortam caminhos.

M&M — Investimentos em negócios com impacto socioambiental aumentaram no Brasil?
Heloisa — A necessidade de repensar as proteínas animais era uma grande tendência que virou realidade. Depois de pandemia, ESG, agora se investe em novas fontes de proteína no mundo inteiro, para carnes e lácteos. Esse movimento vem de uma necessidade do planeta: repensar a emergência climática. Isso não tem nada a ver com vegetarianismo, tem a ver com pensamento sustentável, tanto que surgiram os flexitarianos. Neste caso, a necessidade e o modismo convergiram. Outra parte é que um terço dos alimentos produzidos no planeta são desperdiçados. Tenho que otimizar o que já produzo e repensar toda a cadeia de desperdício.

M&M — Quais são os maiores desafios para o mercado no Brasil?
Heloisa — A grande indústria de alimentação é formada por transatlânticos que não conseguem sair do lugar com agilidade. Enquanto isso, as startups vão transformando o mercado com ideias disruptivas. Na pandemia, as pessoas ganharam uma consciência de consumo, perceberam que também são responsáveis pela situação: “Cabe a mim fazer a mudança”. Houve uma transformação de consciência. Do outro lado, veio o ESG, e a empresa que quer estar lá na B3 sabe que precisa atingir certas metas. A pressão ficou achatada, vem de cima e vem de baixo. Quem não entrar no movimento para se ajustar, será a Kodak. Morre.

 

Heloisa Guarita, investidora-anjo e sócia-fundadora e CEO da RG Nutri (crédito: Arthur Nobre)

 

M&M — Por onde passam as soluções para esses desafios?
Heloisa — A grande indústria tem que fazer essa transformação. Certas práticas não fazem mais sentido, não podem acontecer mais. Um cliente nosso perdia R$ 1 milhão por mês incinerando alimentos e o apresentamos para uma startup que trabalha só com alimentos que seriam descartados. Começaram uma parceria e, hoje, a empresa olha para isso como uma oportunidade de negócio. É mudança de mindset, não dá mais para olhar o lucro apenas como lucro. A nova geração já olha para essas questões de outro jeito. Mas a grande indústria está nas mãos dos antigos.

M&M — Quais conselhos daria para a grande indústria?
Heloisa — A indústria não precisa mudar de um dia para o outro, mas precisa estar em cultura de transformação. E a forma menos custosa de fazer isso, hoje, é olhar para startups. Elas têm um modelo já pronto, que está andando. Em vez de mudar tudo ali dentro agora, olhe a pequena. Se der certo, plugue. Porque é preciso investir aos poucos, até o consumidor estar pronto. O consumidor não está pronto para uma mudança completa da indústria hoje.

M&M — Qual é o perfil de negócios que te atraem e te fazem investir?
Heloisa — Minha tese de investimento é olhar para agrofood e wellness. Gosto muito dos negócios que mexem na cadeia de desperdício, dos plant-based e daqueles que valorizam produtores locais. Gosto de empresas que façam a diferença, que já nascem assim, que não pensam só em faturamento.

M&M — Existem particularidades no setor de alimentação brasileiro que dificultam o desafio de inovar?
Heloisa — Pelo contrário. O Brasil tem uma diversidade espetacular de alimentos a ser explorada, da Amazônia, regionais. É uma abundância. Precisamos nos voltar para a brasilidade de cores, de sabores. E o Brasil tem criatividade e um quê tecnológico importante.

M&M — E o marketing? Qual é o seu papel nesse processo de mudança que as foodtechs tentam promover?
Heloisa — O marketing também precisa se transformar. Transparência é uma exigência muito real. Ele precisa mostrar conteúdos reais, verdadeiros. Precisa aproximar o consumidor, para ele entender o que existe por trás de algo tão tecnológico. Temos uma parceira de dados, que cobre 340 milhões de data points em tempo real, em todas as redes sociais. Hoje, você sabe qual tendência vai virar, qual já virou e qual já ficou no passado. Isso é a realidade. É preciso usar a tecnologia para se aproximar da realidade do consumidor.

M&M — Educar o consumidor também é uma função do marketing?
Heloisa — Educar o consumidor é essencial. E quem ganha quando você o educa é o consumidor, porque a indústria faz o que o consumidor quiser. Se as pessoas quisessem comer pão de queijo colorido, toda a indústria já estaria fazendo.

M&M — Quais são as principais tendências na alimentação?
Heloisa — Olhar para o desperdício, iniciativas muito legais nesse sentido estão surgindo. Proteínas plant-based. Omnicanal, acertar a mão nesse híbrido. Experiência, o que faz a marca se diferenciar hoje é mais que o produto, é a experiência. Valorização da brasilidade, em todas as dimensões e variedades regionais. E, depois da pandemia, a imunidade começa a fazer parte da nossa vida. Temos uma parceria com o (Grupo) Fleury para estudar a nutrigenômica, a genética, saber se alguém tem tendência a alguma deficiência ou intolerância e já adotar um olhar de prevenção.

M&M — Com a evolução das foodtechs será possível pensar em solucionar graves problemas como a fome?
Heloisa — Isso envolve muitos atores e setores. Envolve governos, grande indústria, novas tecnologias. É preciso olhar para impacto, não só para lucro. Não faz sentido nascer hoje uma empresa que não esteja pensando em impacto. Impacto para quem planta, para o produtor local, para o planeta, para a população em situação de vulnerabilidade. É preciso fomentar a mudança no alimento, na produção, na distribuição, e educar o consumidor para essa mudança. Se todo reuso de alimento fosse voltado a combater a fome, seria maravilhoso. Mas somos pequenas formiguinhas fomentando esse impacto.

 

Publicidade

Compartilhe

Publicidade

Patrocínio