Revolução alimentar

Após boom com pandemia, ESG e consumidor mais atento ao impacto socioambiental, foodtechs investem em inovações desde Inteligência Artificial para criar comida plant-based a fazendas em grandes cidades

Débora Yuri

Existe um Brasil onde você salva do desperdício alimentos de restaurantes ou padarias pelo celular, um software faz a gestão inteligente da doação de excedentes da indústria e uma plataforma digital conecta cozinheiros desempregados a consumidores em busca de comida caseira.

Neste País, fazendas urbanas abrigam plantações sem agrotóxicos que economizam água, marmitas saudáveis que aumentam a renda de agricultores familiares são entregues na sua casa e um algoritmo de Inteligência Artificial trabalha para recriar nuggets, hambúrgueres e sorvetes usando plantas como ingrediente principal.

Este Brasil está cada vez maior. O mercado nacional fechou o ano passado com 337 foodtechs ativas, um aumento de 151,5% em relação às 134 existentes no final de 2011, segundo estudo da rede de pesquisas Distrito e da empresa de investimentos Outcast Ventures, especializada em startups de alimentação.

Entre 2010 e 2021, os aportes em foodtechs no País ultrapassaram o total de US$ 1 bilhão, de acordo com o mesmo levantamento. Só no ano passado, elas captaram US$ 386,5 milhões, e 34 deals foram realizados. As sete categorias pesquisadas receberam investimentos, o que significa que o setor está diversificado — super foods, food delivery, smart kitchen & restaurant tech, farm to table, food safety & traceability, consumer service e waste management.

 

Fonte: Foodtech Report 2022 – Distrito e Outcast Ventures

 

O avanço brasileiro segue uma tendência global: desde 2016, mais de 10 mil foodtechs surgiram no mundo. Em 2021, o ecossistema somou US$ 24,4 bilhões em aportes, com 591 empresas adquiridas no mercado internacional. O recordista em unicórnios de Alimentos & Bebidas são os Estados Unidos (22), seguidos pela China (15).

De maneira geral, a pandemia foi a fagulha definitiva para incendiar um celeiro de disrupções que já ensaiava se propagar. À demanda por soluções digitais, somou-se a valorização crescente da gastronomia, da saúde, do bem- estar e de negócios que provocam impacto socioambiental.

 

Fonte: Foodtech Report 2022 – Distrito e Outcast Ventures
* dados desde 2010

 

A crise sanitária de Covid-19 contribuiu para uma aceleração do setor, com crescimento principalmente dos apps de delivery e das ferramentas que digitalizam e otimizam a logística de distribuição, diz Felipe Matos, presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups). “Essas áreas foram muito demandadas, mas também ganhou força a tendência plant-based, voltada à produção de alimentos alternativos aos de origem animal.”

Ampliação do acesso, tanto para os consumidores quanto para os negócios, foi a transformação mais importante trazida pela ascensão das foodtechs, analisa. Com aplicativos e tecnologias, os primeiros ganharam conveniência e opções variadas de alimentação; já os segundos passaram a contar com novos canais de venda.

Estouro da bolha

Maior supermercado 100% online do Brasil, com 600 mil usuários cadastrados, cerca de 120 cidades atendidas e 1.650 funcionários, a Shopper é um pure player que figura no Top 10 das startups de Alimentos & Bebidas mais investidas do País e dos maiores deals já fechados. Ambos os rankings foram divulgados pelo Distrito e pela Outcast Ventures no Foodtech Report 2022.

Cotada para virar o próximo unicórnio nacional de alimentação, a empresa foi fundada pelos empreendedores Bruna Vaz e Fábio Rodas, em 2015. A dupla se inspirou no modelo subscribe and save, lançado pela Amazon, nos Estados Unidos, mas com a ideia aplicada a compras programadas de supermercado. O cliente monta seu carrinho mensal e seleciona a data de entrega.

 

Fonte: Foodtech Report 2022 – Distrito e Outcast Ventures

 

Duas inovações já chegaram ao mercado: as versões fresh, uma cesta semanal de itens frescos (frutas, verduras, legumes e refrigerados), e única, para ocasiões de consumo atípicas, que fogem da rotina. A Shopper compra diretamente dos fabricantes, após a confirmação do pedido, conseguindo, assim, driblar custos como manutenção de grandes estoques, perdas por prazo de validade, grandes áreas de armazenamento e lojas físicas em endereços caros.

Isso é revertido em vantagem para o consumidor: segundo o CEO Fábio Rodas, os clientes economizam, em média, 12% em relação à supermercados tradicionais com vendas online. “Fazemos a logística inteira internamente, da compra de produtos à operação do centro de distribuição e entregas”, explica. Até o fim do ano, uma empresa de tecnologia deverá ser adquirida, para acelerar o desenvolvimento de sistemas, todos proprietários.

A foodtech captou R$ 290 milhões em 2021 e tem outros investidores, que aportaram em rodadas anteriores. O estouro da bolha das startups, para Fábio, coibirá a conivência do consumidor com experiências desagradáveis e deixar de “impactar negativamente o setor como um todo”.

 

Anitta virou sócia da Fazenda Futuro, em maio, e expandiu portfólio da startup com linha Party (crédito: Eduardo Bravin)

 

“Houve abundância de capital para startups em geral nos últimos anos, o que fez surgir muitos aventureiros, que criaram empresas com poucos fundamentos econômicos. O mantra dos fundos era de crescimento a qualquer custo, então, elas entregaram experiências ruins, mas se mantiveram à base de cupons de desconto e preços subsidiados”, observa.

O problema, continua, é que uma primeira experiência negativa acaba formando uma imagem prejudicial para toda a categoria. “Como a fartura de capital para subsídios não existe mais, isso deve acabar. O cliente que até admitia uma experiência ruim, porque era recompensado com cupom, não aceitará mais isso”, projeta.

Outro potencial unicórnio brasileiro do setor, a Liv Up também aproveitou comportamentos de consumo transformados pela pandemia. No caso, a busca por uma alimentação mais saudável, mas prática — ideal para quem não tem exatamente intimidade com as panelas e o preparo de pratos.

Criada em 2016, a companhia recebeu diferentes aportes ao longo desse período e, no ano passado, captou cerca de R$ 230 milhões. Integrante do Top 10 de foodtechs mais investidas e com os maiores deals do País, já superou o número de 500 funcionários e foca, agora, na presença omnicanal, direcionando verba à infraestrutura que permita expansão para novos canais, tanto online quanto físico.

 

Fazenda urbana da BeGreen: modelo tem perda de produção de apenas 2% (crédito: divulgação)

 

Volatilidade no consumo

Para colocar de pé um novo conceito de comida congelada e produzida em alta escala, a empresa desenvolveu 12 softwares que ajudam a otimizar, acelerar e reduzir custos, da produção à entrega final.

Tecnologias são usadas para customizar serviços aos clientes, roteirizar a logística em tempo e modal, gerenciar o estoque mínimo. A mais importante é a de ultracongelamento, que preserva sabor, textura e propriedades nutricionais dos alimentos, aplicada desde o início da operação.

A conjuntura econômica brasileira, de juros e inflação altos, além da maior seletividade em investimentos alternativos — caso das startups —, impõe novos desafios ao setor, diz Lívia Malouf, CMO da Liv Up. “Essa menor disponibilidade de recursos pode afetar a capacidade de testar, inovar e escalar de uma startup. É um momento menos favorável para aquelas em estágios iniciais ou que precisem de investimento para crescer.”

Os consumidores também estão passando por uma fase de adaptação, conciliando sua nova situação econômica com seu índice de confiança e as mudanças de hábitos e paradigmas oriundos da Covid-19. “Suas necessidades e prioridades mudaram”, resume a executiva.

Às marcas e empresas, resta adaptarem-se às novas demandas. Malouf explica: durante o auge da pandemia, pequenos luxos e indulgências cresceram de forma inesperada, mas a busca por economia e a melhor equação de valor lideram a tomada de decisão de compra agora. Ao mesmo tempo, há um aumento no consumo de entretenimento, provável reflexo da vontade de “recuperar o tempo perdido”.

“É um período de grande volatilidade, que exige entender o contexto e acompanhar a evolução das preferências de consumo, para trazer foco em ações relevantes, que façam a diferença na vida das pessoas hoje”, afirma.

Tendências

Entre as subcategorias de foodtechs, as duas com a maior quantidade de players no Brasil operam baseadas em tendências de comportamento e consumo, mostra o Foodtech Report 2022: digitalização de negócios e lançamento de novos alimentos e bebidas. Das startups que comercializam produtos, um quarto (24,7%) cria inovações plant-based. Diferentes pesquisas globais já mapearam os macrotemas que devem balizar mudanças no cenário varejista nos próximos anos, e o futuro da alimentação está sempre presente. A escalada da comida menos industrializada e de alternativas à proteína animal reflete o interesse dos consumidores por mais transparência na cadeia de produção, sustentabilidade e saudabilidade.

“Nosso foco é sofisticar a tecnologia a ponto de as pessoas não reconhecerem o que é animal e vegetal”. “Temos 12 inovações sendo desenvolvidas para tornar frigoríficos e laticínios mais obsoletos.” Declarações de líderes da Fazenda Futuro, avaliada em R$ 2,2 bilhões, deixam claro os planos ambiciosos traçados para o curto prazo.

Pioneira latino-americana na produção de carne à base de plantas, a foodtech nasceu em 2019, recebeu aporte de R$ 300 milhões em 2021 e já está presente em 30 países, de Inglaterra, Holanda e Suécia a Uruguai, México e Emirados Árabes. O mercado internacional responde por 65% de seu faturamento; no Brasil, chegou a oito mil pontos de venda.

Com 120 funcionários, a empresa comercializa seis linhas de produtos e se orgulha de aplicar 0% de ingredientes de origem animal em todas elas: hambúrguer, carne moída, almôndega, linguiça, frango e atum. A última inovação foram miniquibes, mini-hambúrgueres e miniempanados de frango da linha Party, lançada com Anitta, que virou sócia da Fazenda Futuro em maio — a estrela pop é uma das consumidoras famosas da marca.

 

Necessidades e prioridades dos consumidores mudaram, indica Lívia Malouf, CMO da Liv Up (crédito: J Cordaro)

 

Artificial chef e flexitarianos

O esforço para criar comida plant-based com gosto, textura e suculência que emulam as de proteínas animais acaba atraindo não só vegetarianos e veganos, mas quem pretende incorporar ao seu cardápio alternativas — os chamados flexitarianos, que querem reduzir o consumo de carne e o impacto de sua alimentação no planeta.

“A tecnologia está centrada na cadeia de produção. Não é comida feita em laboratório, os ingredientes têm origem natural”, diz Mari Tunis, diretora de marketing da Fazenda Futuro, que acredita na comunicação como peça fundamental para as foodtechs promoverem as transformações desejadas.

Educar os consumidores é parte desse processo. Diferentemente dos europeus e norte-americanos, que já são mais familiarizados com a categoria e cujas buscas são por conhecimento sobre impactos ambientais, o mercado brasileiro ainda está num estágio de experimentação.

Apesar do interesse por temas como desmatamento e aquecimento global estarem aumentando, os brasileiros ainda procuram mais informações sobre ingredientes e tabelas nutricionais dos produtos, compara Tunis. “Por isso, o marketing precisa apresentar ao consumidor as novas possibilidades que ele tem para continuar a comer o que gosta, mas de uma maneira mais consciente.”

Mauricio Alonso, general manager no Brasil da NotCo, foodtech que aplica Inteligência Artificial para reproduzir com plantas alimentos e bebidas de base animal, também afirma que um dos papéis do marketing é ampliar a conscientização sobre o impacto do consumo de proteína animal e da indústria alimentícia no mundo.

Fundada no Chile, em 2015, a NotCo chegou ao Brasil em 2018, via importação da matriz. Hoje, soma 70 colaboradores no País e todas as suas linhas são produzidas localmente, como a NotMayo (maionese), o NotMilk (leite) e o NotIceCream (sorvete).

O grande diferencial da empresa é o algoritmo próprio de AI, que busca em sua base de dados a combinação de vegetais que gerará um alimento com sabor, textura, aroma e aparência muito próximos a um de origem animal. Essa inovação acelera o desenvolvimento das receitas, economizando tempo e recursos. Bebida proteica e creme de leite plant-based foram as últimas invenções do artificial chef chamado Giuseppe.

Um dos maiores desafios brasileiros está na área fiscal, avalia Mauricio Alonso. “Pagamos muito mais impostos em produtos plant-based do que os produtos à base de animais pagam. A solução passa pela equiparação, para que os dois tenham as mesmas regras e os mesmos incentivos.”

 

Fábio Rodas e Bruna Vaz, fundadores da Shopper: clientes economizam, em média, 12% nas compras (crédito: divulgação)

 

Produção sustentável

No Startup Scanner, ferramenta que monitora o ecossistema brasileiro de inovação em tempo real, havia 422 foodtechs no início de agosto, com atuação em 23 categorias, espalhadas por 104 cidades. A plataforma pertence à Liga Ventures, rede que conecta grandes corporações a startups, e já acelerou 30 iniciantes do setor de alimentação, em parceria com companhias como Unilever, Bauducco e Sodexo.

Cerca de 10% das startups fomentadas pela organização transitam em torno do tema foods. Estudo feito em parceria com a PwC Brasil apontou crescimento de 15,5% nas foodtechs nacionais entre 2019 e 2021 — o período mais crítico da pandemia.

No recorte regional, as diferenças ficam evidentes. Marketplace B2B é a principal categoria no Norte, enquanto marketplace de alimentos e delivery lidera no Nordeste e o Centro-Oeste é conduzido pela cadeia agropecuária. Sudeste e Sul, que respondem por 90% do total de foodtechs, vivem uma predominância de novos alimentos e bebidas.

São negócios de todos os portes que estão nascendo ou crescendo, casos da Envolve Bioembalagens, que produz embalagens sustentáveis à base de cera numa fábrica de pequeno porte em Campo Limpo (SP), para quem sonha em cancelar o filme plástico. E da ProntoChef, que trouxe ao País a atmosfera modificada, tecnologia que dispensa conservantes para manter a comida fresca por 14 dias.

A BeGreen, startup farm to table que fornece hortaliças diretamente ao consumidor, tem 94 funcionários, criou a primeira rede de fazendas urbanas da América Latina e já instalou oito nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Goiás. Uma fica na sede do iFood, outra dentro da fábrica da Mercedes-Benz e uma terceira no shopping paulistano Plaza Sul.

Mais de 24 toneladas de hortaliças 100% livres de agrotóxicos são produzidas por mês, a perda de produção é de apenas 2% e o modelo promove economia de 90% de água, em comparação ao plantio tradicional.

“O que permite esses resultados é um ambiente tecnológico e altamente controlado. Por estarmos próximos do consumidor final, outro ponto importante é que há menor emissão de carbono com a distribuição”, conta Giuliano Bittencourt,CEO da BeGreen.

O executivo acredita que levar a produção de hortaliças para o meio das metrópoles, em cenários antes impensáveis é o que mais impacta o público e o mercado. “Isso eleva a questão da origem do alimento a outro nível”, diz, acrescentando que, por muito tempo, o marketing criou demandas para vender soluções. Já as foodtechs estão fazendo o que chama de marketing original. “Usamos conhecimento e tecnologia para desenvolver soluções que resolvam problemas reais e muito sérios”, afirma.

 

Envolve Bioembalagens: embalagem feita à base de cera é alternativa ao filme plástico (crédito: divulgação)

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