As oito letras que mudaram o mercado
Martechs avançam em todos os segmentos e representam hoje o terceiro setor com mais startups no Brasil
Martechs avançam em todos os segmentos e representam hoje o terceiro setor com mais startups no Brasil
Por Débora Yuri
Era 1997. No campus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte (MG), um quiosque que vendia celulares começou a fazer sucesso. Chamado Take Phone e criado por uma turma de estudantes empreendedores, o negócio logo se expandiu para dez lojas e assistência técnica autorizada. Dois anos depois, com a chegada da internet ao celular, nascia oficialmente a Take.net, pioneira no mercado brasileiro de serviços de valor agregado para a telefonia móvel. Aquele grupo de jovens mineiros passou a desenvolver uma série de produtos inéditos, como a plataforma que vendia ringtones personalizados, conectada ao SMS das operadoras. Quem viveu aquela época sabe: os toques musicais viraram febre.
Com a evolução do universo mobile, foi lançado o Blip, sistema integrado de construção e gestão de chatbots. Desde 2020 denominada Take Blip, a empresa tem hoje a plataforma líder em interações inteligentes entre marcas e consumidores nos aplicativos de mensagem. Mais que isso, reflete a potência das martechs, startups que inovam no marketing e na propaganda. Amadurecido, o setor já soma mais de mil players no Brasil. Segundo relatório da rede de pesquisas Distrito, o número saltou de 727, em fevereiro de 2021, para 1.013 em dezembro último — crescimento de 39%. Elas estão atrás apenas das fintechs e retailtechs em quantidade de representantes, com healthtechs e empresas voltadas à governança ambiental, social e corporativa (ESG) completando o top 5. No ano passado, registrou seu recorde de captações no País: US$ 228,9 milhões.
A ascensão das startups de marketing e tecnologia despontou a partir de 2014, e a grande maioria não tem mais de duas décadas de estrada como a Take Blip, claro. Mas a capacidade de transfigurar o mercado e provocar disrupção seguem intactas. “O marketing já se transformou. Sem tecnologia, ele já não é mais marketing”, diz Roberto Oliveira, cofundador e CEO da companhia concebida na UFMG, que soma 3 mil clientes, 1,3 mil funcionários e projeta receita superior a US$ 100 milhões neste ano.
Operando em 26 países, dos EUA à Índia, da África do Sul à Finlândia, a martech desenvolveu uma plataforma de business messaging multicanal, alavancada por inteligência artificial, e foca atualmente no comércio conversacional. No total, a Take Blip já recebeu US$ 170 milhões em aportes. Depois do Vira Texto, recurso que transforma áudios do WhatsApp em texto, uma solução para pagamentos dentro do mensageiro será lançada. “A comunicação entre as pessoas mudou muito. Hoje, quase só falamos por mensagens. É inevitável que a comunicação entre empresas e seus clientes caminhe na mesma direção, e essa transformação já está acontecendo, com velocidade”, analisa Oliveira.
Um case que mostra onde a junção de criatividade e tecnologia pode chegar é o “Leia para uma Criança”, do Itaú. O projeto enviava livros físicos para a casa das pessoas; durante a pandemia, foi migrado para o WhatsApp. “Isso permitiu que mães e pais baixassem livros em PDF diretamente pelo app. Neste caso, o chatbot impulsionou a democratização e o acesso à leitura”, recorda ele.
Na lista das dez maiores martechs nacionais, de acordo com o DM Score — ranking criado pelo Distrito que analisa a estrutura e a evolução das startups de diversos setores —, a Rock Content também nasceu em Belo Horizonte, em 2013, quando pouco se falava em marketing de conteúdo no Brasil. Hoje, é considerada a maior empresa do gênero da América Latina, com atuação nos EUA, no México e no Canadá. Lá atrás, seus fundadores perceberam a oportunidade de ajudar empresas nacionais a adotar esse modelo de atração de clientes, mais eficiente e adaptado à realidade digital. “Identificamos que a principal dificuldade era criar conteúdos de qualidade em escala, dentro de uma estratégia, por isso, nosso primeiro modelo de negócio era focado em conteúdos escritos por freelancers, vendidos em uma plataforma online”, conta o cofundador Vitor Peçanha.
Em 2019, a martech mineira adquiriu a Scribblelive, dos EUA, incluindo em suas soluções plataforma de criação de conteúdos interativos, que geram mais engajamento. No início deste ano, concluiu a segunda aquisição, da também norteamericana WriterAccess, sistema para contratação de freelancers com novas funcionalidades, como o uso de inteligência artificial (AI) para selecionar os produtores de conteúdo que mais combinam com determinada marca.
Entre as ferramentas em desenvolvimento na Rock Content, que soma 2.500 clientes e 400 funcionários, AI é, justamente, a menina dos olhos. Para Peçanha, as startups brasileiras estão transformando o marketing não apenas com as tecnologias e soluções que criam. “Elas educam o mercado sobre novas maneiras de se fazer marketing e trouxeram várias contribuições. Ajudaram o setor a se tornar mais maduro, focado em dados, em processos eficientes e comprometido com a geração de resultados de negócios”, avalia. “Além disso, têm um papel educativo gigantesco no cenário.”
No Brasil, a maior parte das martechs ainda tem uma estrutura enxuta: 84,4% do total estão na faixa de um a 50 colaboradores, o que configura uma empresa de pequeno porte, de acordo com estudo do Distrito. Cerca de dois terços delas têm até 20 funcionários. Em termos regionais, o Sudeste domina amplamente o ecossistema. Entre as top dez startups do País ligadas ao marketing, nove são da região e seis, do estado de São Paulo.
Foi em um apartamento da Vila Madalena, na zona oeste paulistana, que a Escale nasceu, em 2015, criada pelos norte-americanos Ken Diamond e Matt Kligerman. “Quando chegamos ao país, tivemos muita dificuldade para contratar serviços essenciais como internet, plano de saúde e abrir conta em bancos. Vimos aí uma oportunidade e começamos a analisar a fundo o panorama local dessas grandes marcas”, lembra Diamond, CEO da empresa. Por vários motivos, as organizações tradicionais não conseguiam evoluir na mesma velocidade de companhias nativas digitais, prossegue ele. Um deles era a estratégia de aquisição de clientes, realizada por canais analógicos, como as agências físicas de bancos e o atendimento de corretores porta-porta. Estava desenhado o negócio da Escale, uma scale-up de tecnologia que entrega aquisição digital, da geração de leads à conversão de clientes, a parceiros dos setores financeiro, de telecom e da saúde.
Segundo a empresa, que recebeu mais de R$ 200 milhões de investidores desde a fundação, suas ferramentas geraram R$ 6,2 bilhões em receita incremental de clientes para as marcas parceiras apenas em 2021. A solução de atribuição “full funnel data”, por exemplo, permite conectar os dados de marketing aos de vendas, o que ainda é um desafio para as grandes companhias. “As startups chegam com uma capacidade imensa de olhar para as diversas dimensões que envolvem o processo complexo de conversão do consumidor. E essa complexidade acontece porque o universo é cada vez mais omnichannel”, diz Diamond.
Protagonistas de diferentes fases, cada uma com grandes acontecimentos que moldaram o mercado — social, busca, dados, a primeira onda de AI e machine learning, a economia da paixão liderada pelos influenciadores —, as martechs se concentram agora nas próximas tecnologias disruptivas, como chat commerce, Web3.0, metaverso, blockchain, realidade virtual (VR) e realidade aumentada (AR).
Em 2021, US$ 8,1 bilhões foram captados por martechs do mundo inteiro, com 212 aquisições concluídas. Marcado pela pandemia e o consequente avanço da digitalização corporativa nos mais diferentes negócios, o ano registrou o recorde absoluto de novos unicórnios do setor: 12 surgiram, sendo que nove, que têm sede nos EUA. China, França e Israel, ganharam startup de marketing cujo valor supera US$ 1 bilhão cada um. Desses 12, cinco atuam na área de vendas & canais e três representam o segmento de dados, dividido em marketing analytics & performance e big data & business intelligence” No Brasil, embora o ecossistema tenha crescido no ano passado, duas categorias puxaram a evolução: relacionamento com o cliente e vendas & canais’
Também fundada na capital de Minas Gerais, há uma década, a Sympla não se reconhece como martech, mas atua no setor de soluções para experiências e marketing, além de fazer parte do ranking das dez maiores do país formulado pelo Distrito. Começou como uma plataforma de eventos, arquitetada para facilitar a compra e a venda de ingressos, até virar o marketplace de experiências que alcança mais de 200 milhões de compradores em 3,3 mil cidades brasileiras. Com o tempo, a plataforma passou a contar com segmentos como entretenimento, corporativo, educativo, esportivo e religioso, cobrindo eventos de todos os portes, de grandes festivais e casas fixas com lugar marcado aos menores, de produtores que usam a ferramenta no modelo DIY.
Para o mercado de comunicação e marketing, a base qualificada de usuários e uma infinidade de dados sobre suas preferências, combinada à tecnologia que permite segmentação, é um dos diferenciais da empresa. “O potencial do Brasil em inovação é enorme, mas depende de diversos fatores para prosperar: fomentos e políticas públicas federais, estaduais e municipais, formação de mão-de-obra qualificada, a cultura de empreendedorismo e de inovação em si. Apesar de termos evoluído em vários deles, ainda há muito a avançar”, diz a CEO, Tereza Santos.
Nos últimos dois anos, o universo digital esteve no centro dos investimentos, com projetos que já existiam e acabaram acelerados pelas restrições sociais advindas da pandemia. Do Sympla Streaming, para transmissões ao vivo e online, ao Sympla Play, plataforma para conteúdos on demand, as novidades ajudaram a cadeia de produtores a sobreviver à crise sanitária, levando espetáculos, festas, seminários e cursos ao ambiente digital. A Covid-19 impulsionou o setor de martechs e as empresas tech em geral, mas a tendência de crescimento já vinha forte anteriormente, ressalta Santos. Com um portfólio que agora mistura eventos presenciais, online e híbridos, a empresa vai se concentrar na ampliação da personalização da experiência do usuário, um dos próximos capítulos da revolução proposta pelas startups do setor.
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