Logística da estiagem

Marcos Gouvêa, fundador e diretor geral da consultoria GS&, destaca que, se antes havia uma perspectiva clara de aumento de operações internacionais no varejo brasileiro, isso não deve acontecer mais nesse período

Salvador Strano

Para o varejo, os últimos meses foram marcados pelos reflexos do isolamento social no comportamento do consumidor e na perda de renda que atingiu diversas camadas sociais. Se por um lado isso dá razão aos que argumentam que a crise impulsionou inovações previstas para os próximos três anos, também alterou rumos antes vistos como certos para o segmento. E é nesse sentido que Marcos Gouvêa, fundador e diretor geral da consultoria GS&, destaca que, se antes havia uma perspectiva clara de aumento de operações internacionais no varejo brasileiro, isso não deve acontecer mais nesse período.

Meio & Mensagem — Quais são as principais tendências que a GS& enxerga para o varejo no futuro próximo, de dois a três anos?
Marcos Gouvêa — Comparado com a realidade atual, teremos um aumento significativo da concentração do varejo no Brasil. Os grandes grupos terão maior participação de mercado. Aquilo que anteriormente era uma perspectiva clara de aumento de operações internacionais no varejo brasileiro não deve acontecer nesse período. Ao mesmo tempo, os que aqui já estão aumentarão sua parcela. A imagem brasileira está, momentaneamente, sendo vista com cautela pelos investimentos externos. As notícias sobre a dificuldade de organizar as coisas, sobre a pandemia, atrapalham. Quem não está aqui, pensará umas cinco vezes mais antes de entrar. Outra coisa importante é o crescimento dos canais digitais no varejo como um todo, e o aumento de marcas próprias em todos os setores. Quem está operando nesse momento está cada vez mais sensível a operar marcas próprias. O grande enigma diz respeito ao crédito ao consumo, que representava 28% antes da pandemia. Em países equivalentes ao Brasil, esse número oscila entre 50% e até 100%. Em algum momento, o governo e o setor financeiro se darão conta de quanto se pode aumentar o crescimento do consumo no Brasil pela melhoria de crédito às famílias. A outra coisa é um reposicionamento e uma reconfiguração dos centros comerciais, incluindo os shoppings centers. Eles precisarão ocupar espaços com mais serviços, lazer, educação.

M&M — Muito se fala sobre como a pandemia acelerou a transformação digital em diversos segmentos. Isso é verdade também para o varejo?
Gouvêa — Quando falamos em transformação digital, todos os setores estão vivendo. Por que no varejo, assim como no setor financeiro, essa questão é mais importante? Porque é exatamente a interface que o negócio tem com o seu consumidor final. Ele está muito a reboque da profunda transformação com o chamado omniconsumidor cidadão. Decompondo isso: é o consumidor que compra em qualquer canal a qualquer momento, segundo a melhor disponibilidade. Há uma transformação que afeta demais que é a sua dimensão como cidadão, que já existia anteriormente, pré-covid, quando ele, estimulado pelas redes, passou a ter um contato mais próximo com a realidade. O varejo, e aqui temos que entender o varejo ampliado, vem se transformando e tudo se acelerou demais nesse período. O cenário mais amplo sairá em algum momento do processo que envolveu a pandemia tendo em uma ponta esse consumidor transformado pela intimidade, conveniência, facilidade dos meios digitais. De outro lado, a concorrência transversal que envolve o varejo como um todo. Isso toma uma abrangência bastante grande e o lado positivo é que a análise do que acontece no varejo é interessante porque a diversidade e multiplicidade de alternativas atingindo um consumidor que se transforma demais no período cria uma multiplicação de desafios e oportunidades. As empresas no mundo e no Brasil já vinham se adaptando para esse processo de transformação: a multiplicação de formatos, o crescimento da conveniência, o crescimento dos canais digitais, a crise dos formatos tradicionais, o repensar dos shoppings centers. Tudo isso se acelerou dramaticamente. Só para dar um exemplo, no Brasil, estaríamos num patamar de 5% de participação do e-commerce nas vendas totais do varejo. Claramente, no ano que vem devemos chegar a 10%. Sem a Covid, isso talvez demandasse quatro anos.

M&M — Boa parte dessa aceleração veio da adoção forte de soluções de atendimento digital. Como ficaram as soluções de integração com loja física?
Gouvêa — De fato, a integração de canais já vinha caminhando, em resposta a uma demanda dos próprios consumidores. Nesse período, por ausência de alternativas, exponenciou-se violentamente. Como resultado, há o comportamento dos consumidores escolherem entre a conveniência da internet ou a conveniência do próximo de casa. Outro componente nisso são os serviços integrados aos produtos, que é um fenômeno que marca a face do varejo: uma P&G operando lavanderia, a mesma coisa com a Unilever. Isso é um dos elementos que a questão da Covid acelerou, e que já estava acontecendo. Agora, pelo crescimento do uso da internet, e pelo fato que muito dos dramas envolvidos na abertura de uma operação tradicional de varejo podem ser superados pelo e-commerce, o estímulo das marcas a entrar cresceu demais. Não conheço quem tenha ido para o canal direto e depois tenha recuado.

Marcos Gouvêa, fundador e diretor geral da consultoria GS&: “As empresas já vinham se adaptando para esse processo de transformação: multiplicação de formatos, o crescimento da conveniência, o crescimento dos canais digitais, a crise dos formatos tradicionais, o repensar dos shoppings centers. Tudo isso se acelerou dramaticamente”

M&M — Varejistas que não têm reservas de caixa ou acesso a crédito devem ficar para trás na renovação digital em comparação com as empresas mais estruturadas?
Gouvêa — É uma situação dramática. Sendo realista, a grana não está chegando para a empresa média e pequena, apesar dos discursos bem intencionados. Parte disso está sendo de alguma maneira coberto pelos fornecedores, pressionados pelo varejo para aumentar prazo e poder dar fôlego. Se não faz isso nos médios e pequenos, eles ficam concentrados só no grande. Parte desse problema tem sido equacionado na extensão de prazo. O recurso está faltando para todos, à exceção das grandes corporações que, num primeiro momento, tomaram recursos, sentaram e agora estão tocando o barco. O que está equilibrando um pouco o jogo, mostrando que talvez nossa recuperação aconteça em U ou V, é o fato de que o auxílio emergencial está permitindo que segmentos tenham uma renda que anteriormente sequer tinham. De alguma maneira, isso está amenizando um pouco e, ao mesmo tempo, gerando um desalinhamento setorial muito forte. O setor de alimentos, farmácia, material de construção, vão bem, obrigado. Já vestuário e calçados estão sofrendo muito. Só o tempo realinhará.

M&M — Como os diferentes segmentos do varejo devem responder a esse momento de abertura que começamos a viver?
Gouvêa — Todos sofrendo com as diferentes orientações, posturas e regulamentações de abertura. O pessoal está se adaptando e seguindo as orientações. Brincar com a vida, ninguém corre o risco de contrariar. De forma geral, as empresas estão reabrindo o possível, mas, ao mesmo tempo, estão percebendo como o consumidor reage. Certamente, muitas empresas deixarão de seguir a liberalidade porque não compensa economicamente. O consumidor continua ressabiado. Supermercados e hipermercados estão caminhando relativamente bem. Eletrodomésticos, móveis e vestuário estão abrindo o quanto é possível, mas estão sentindo uma queda de tráfego bastante grande. O setor mais afetado está na alimentação fora do lar, nesse momento, a queda é de 55% em relação ao ano passado. Aí é um drama, com algumas poucas lojas abertas, praças de alimentação restritas, tornando a coisa ainda mais dramática.

M&M — A GS& se posiciona muito junto às empresas do setor fazendo imersões em mercados avançados e coisas do gênero. Como transformar isso neste novo momento?
Gouvêa — A questão das viagens, elas rigorosamente pararam desde março. Neste momento, estamos considerando dois programas internacionais a partir de outubro, novembro, ainda em processo de decisão. Tínhamos em agosto nosso Latam Retail Show. Depois de um mês, percebemos que não havia o menor clima, então, criamos o Global Retail Show, fazendo do limão uma limonada. Resolvemos expandir e fazer um evento envolvendo 15 países, com seminários acontecendo em todos eles, reunindo perto de 280 palestrantes e moderadores, duas pesquisas, uma internacional com consumidores e outra com líderes do varejo no Brasil analisando a perspectiva de como eles veem a transformação do varejo pós-covid. Já que não dá para ir a lugar nenhum, vamos trazer o lugar nenhum para cá. Integramos isso tudo com uma curadoria, e oferecendo isso internacionalmente. O Brasil sofreu as consequências dos seus próprios equívocos, na comunicação, nas opções de combate à Covid. Ao fazer o Global Retail Show, estamos entendendo que é uma chance de podermos mostrar o quanto estamos fazendo para o mundo, sendo o alavancador de uma grande discussão global.

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